Ontem eu conversava com a minha querida cunhada, Lívia, boa cozinheira e do clube do “cozido”, e meu saudades dessa panelada que vem andando pela História, como uma vitória contra a escassez. E fui consultar o primeiro livro a respeito, escrito por Domingos Rodrigues, em seu livro pioneiro compêndio sobre o comer em Portugal, “A Arte da Cozinha”, de 1680. Ele integra à cozinha lusitana alguns clássicos pratos mouriscos (carneiro, galinha com almôndegas, pescados e marisqueiras) e menciona a célebre “olla podrida”, matriz de todos os cozidos: à portuguesa, à espanhola, à francesa, etc. Varia a quantidade, o volume (o “pot-au-feu” é quase hospitalar) e o tipo de alguns insumos, até porque a regra mais antiga da alimentação é a lógica da escassez: os povos comiam (e comem) o que tinham ao alcance.
Vejamos a receita desse cozinheiro da Casa Real portuguesa ao tempo de D. Pedro II (de lá, é claro). “Ponha-se em a coser em huma panela cheia d’água com sal uma galinha, hum lombo, hum coelho (ou lebre) huma orelha de porco, hum pedaço de larção (parte gorda da espádua do porco), chouriço, linguiça, tudo misturado com nabos, três cabeças de alhos, duas dúzias de castanhas, sal, cheiros e couve”. E esta água, coada, servia e serve para cozinhar o arroz que acompanha o prato e/ou para um consomê. Já mais modernamente, o cozido à madrilena – ou “puchero” – inclui costela de porco, peito de boi, paio, grão-de-bico, batatas, cenouras, repolho e cebola e nos temperos, o corau e o cominho.

olla podrida
Agora reparem na fartura. O começo é sempre o da “sopa de pedra”: água fervendo, sal e algum tempero. Mas aí entram a carne de vaca, ou peito de boi, a pá e a orelha de porco, carne de galinha, morcela, farinheira, toucinho defumado, chouriço, couve, alho, batatas, nabos, cenouras, feijão branco, cheiro verde, cravos. Detalhe: como as carnes têm cozimento diferentes, entram na cocção por ordem de “dureza” e sempre precedendo os legumes, é claro. Aliás o segredo de todos eles é um lento, mas diferenciado cozimento.
Detalhe: e uma vez pronto, tem que ser servido também em um timing calculado, para não passar da conta. Quando eu ligava para o Antiquarius reservando a minha mesa, o Manoelzinho sempre perguntava: “mas a que horas vem?” E explicava na clara lógica portuguesa: “por que se atrasar, vai comer um guisado…”

cozido à portuguesa
Na linha dos “cosidos”, não podemos esquecer o “bollito italiano”, originariamente criado na Lombardia. As três principais diferenças dos anteriores são a inclusão do “cotechino”, um embutido de carnes de porco, frescas, do “zampone” (a mesma mistura de carnes de porco mas com outro invólucro) e da mostarda de Cremona, com um toque doce, porque leva açúcar cristalizado e pêssegos. E em algumas regiões entra ainda a bata-doce e a noz-moscada. Saudades dos almoços das quartas-feiras no Ca’ d’Oro, em São Paulo, nos tempos da Gazeta Mercantil. Uma vez o Maluf levou uma ampola de Romanée Conti – pena que éramos 5 à mesa!
Já o similar francês é muito mais light. Mas “compreende”: músculo bovino, um osso de tutano, cebolas, um talo de aipo, cenouras, alho-poró, nabos, batatas e ervas aromáticas. Detalhe: dependendo da receita pode-se usar coxa de pato em vez de músculo bovino. E pode ser apreciado como sopa ou como prato principal. Mas sempre com mostarda forte.

pot-au-feu
Mas seja de onde for a sua certidão de nascimento é um prato forte, ou para o outono/inverno ou, pelo menos, para o almoço e não jantar, se possível com uma tarde baldia para a “siesta”. Tanto que no saudoso Antiquarius aqui do Leblon, a versão lusa era servido aos domingos e eu brincava com o Carlos Perico e o Manoelzinho que “o cozido de lá só valia a pena … com ambulância na porta! E como quem tem amigos não morre pagão, o também inesquecível Manoelzinho (que agora faz o maior sucesso na Asa Sul, em Brasília, com o restaurante que leva o seu nome), servia uma bagaceira gelada que acelerava a digestão em velocidade Mach3. As mulheres preferiam a Amarguinha ou o licor Beirão, às vezes, com gelo: bem haja!.
Quanto a mim eu acrescentava três Ave-Marias para N. Sra. de Fátima ficar pré-perdoar o pecado da gula …
Por Reinaldo Paes Barreto