Para especialistas ouvidos pelo Um Só Planeta, contudo, há ainda pontas soltas que precisam ser melhor esclarecidas nos dois anos previstos para a regulamentação da lei. Texto espera sanção presidencial

Não foi exatamente na calada da noite, mas a aprovação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei (PL 182/2024) que regulamenta o mercado de carbono no Brasil levou muita gente a cancelar a folga do feriado de 20 de novembro, quando é celebrada a Consciência Negra. O texto havia passado pelo aval do Senado uma semana antes, no dia 13 de novembro, mas, como algumas alterações foram feitas, voltou à Câmara. Agora, só falta a sanção presidencial para ele se tornar lei.

Especialistas estão há meses cultivando a expectativa de que sairia ainda este ano, uma vez que ano que vem o Brasil sediará a Convenção da ONU sobre o Clima, a COP 30. Com a lei, o país dá um passo a mais em direção a redução de suas emissões de gases de efeito estufa (GEE). A criação do mercado regulado está prevista no Plano Nacional de Descarbonização do Brasil, a NDC, uma das obrigações do país no âmbito do Acordo de Paris.

Há poucos dias, o Brasil apresentou na COP deste ano (COP 29), em Baku, no Azerbaijão, a revisão de sua NDC. O plano estabelece uma meta de redução entre 59% e 67% nas emissões de GEE até 2035, em comparação com os níveis de 2005. Isso significa diminuir entre 1,05 e 0,85 gigatoneladas de gás carbônico equivalente (GtCO2e). Para isso, todos os setores da economia estão envolvidos.

mercado de carbono regulado é um dos mecanismos utilizados por países para penalizar e/ou incentivar sua redução de emissões pelos setores econômicos. Segundo o Banco Mundial, existem 75 jurisdições, como a União Europeia e o governo da Califórnia, nos Estados Unidos, que adotam a precificação do carbono. São utilizados, basicamente, dois tipos de sistemas: o comércio de emissões (também conhecido como cap and trade) e o imposto sobre as emissões de carbono. Estima-se que aproximadamente 24% das emissões globais estão sujeitas a esses mecanismos de precificação.

O Brasil vai implementar o mecanismo de cap and trade, que coloca limitação de emissões a grandes emissores e estabelece um comércio de permissões de emissões (quem ultrapassar a cota, pode comprar de quem está com crédito). Empresas que emitirem mais de 10 mil toneladas de CO2e por ano deverão reportar suas emissões, enquanto aquelas com mais de 25 mil toneladas serão obrigadas a reduzi-las. Será criado o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que contará com um órgão gestor, deliberativo e consultivo, mas a falta de participação da sociedade civil é uma crítica de ambientalistas. Estão previstos dois anos para que o governo regulamente tudo.

Mas e o PL do Brasil, é suficiente para o país chegar a sua meta? O que está sendo bem visto no texto final e o que poderia ter sido feito de diferente? Para responder a essas perguntas, Um Só Planeta conversou com diversos especialistas. Veja os principais pontos.

Pontos positivos do PL

Ter algum é melhor do que nenhum. Um dos principais comentários que ressoou no mercado de sustentabilidade neste feriado foi o fato de, finalmente, o texto ter sido aprovado pelo Congresso e estar a um passo, literalmente, de passar a valer.

“O principal ponto positivo é colocar um preço no carbono”, afirma Fernanda Tanure, sócia de Direito do Ambiente, Clima e Recursos Minerários do BMA Advogados. “Colocar um preço no carbono nos permitirá entender quanto custa emitir gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, fomentará um mercado relevante de créditos”, acrescenta.

Além de haver uma expectativa de que o mercado de carbono movimente cerca de US$ 100 bilhões no Brasil, muitos projetos de geração de créditos e de soluções baseadas na natureza trazem ainda benefícios a comunidades e à biodiversidade. “Não há como negar sua importância econômica e seus efeitos positivos na pauta climática”.

Destrava mercado voluntário e cria o de CRAM

“O texto não é perfeito, precisará de arestas, claro, mas foi um trabalho que traz uma uniformização no comércio dos créditos já realizado pelo mercado voluntário no Brasil, prevendo um sistema de interoperabilidade entre o ambiente voluntário e regulado”, comenta Fernanda Claudino, advogada, gestora ambiental e professora da FGV. Isso faz com que uma parte dos créditos do mercado voluntário possa entrar no mercado regulado, sob certos critérios de elegibilidade e dentro de uma porcentagem.

Na prática, créditos de carbono poderão ser convertidos em Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE), que poderão ser transacionados em ambiente regulado para conciliar emissões de operadores que ultrapassem o limite delimitado. Ou seja, dentro do ecossistema regulado, empresas que ficarem abaixo do limite de emissões pré-estabelecidas poderão comercializar suas cotas de emissões (CBEs) não utilizadas para outras empresas que não conseguiram cumprir seu limite.

Leonardo Freire, sócio da área ambiental e mudanças climáticas do Candido de Oliveira Advogados, acredita que a aprovação pode, no curto prazo, levar a uma retomada de projetos de geração de créditos de carbono que estavam aguardando regulação, uma vez que o PL oferece maior segurança jurídica. No longo prazo, porém, ele destaca a necessidade de focar na regulamentação para garantir a interoperabilidade entre mercados voluntário e regulado e aumentar a liquidez. “O ambiente é promissor”, afirmou.

Freire também observou que, em países onde mercados regulados de carbono foram implementados, os mercados voluntários mostraram uma tendência de alta, o que é positivo para projetos já em andamento.

Entre os aspectos positivos do PL, ele destacou o Certificado de Recebíveis de Créditos Ambientais (CRAM), que considera uma solução importante para “desafogar e bancarizar” o setor, que antes era dependente de “equities”.

Definição do instrumento

Viviane Romeiro, diretora de Clima, Energia e Finanças Sustentáveis do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), comenta que a definição da natureza jurídica dos ativos como valores mobiliários foi ampliada no atual texto.

“Anteriormente, essa classificação aplicava-se apenas às cotas e certificados de emissão. Agora, os créditos de carbono também são incluídos nessa categoria quando negociados nos mercados financeiro e de capitais.” Com essa mudança, diz, fica explicitamente estabelecido que esses ativos passam a estar sob a regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o que assegura um acompanhamento mais rigoroso e alinhado com as normas do mercado financeiro.

Governança robusta e participativa

Marinho, da ECCON, também lembra que a criação de um órgão gestor (SBCE) que possa criar regras e organizar processos, reduzindo pontos de dúvidas e divergências no mercado, também está sendo elogiado.

Para Caio Victor Vieira, especialista do Instituto Talanoa, a principal força do texto aprovado é a sua governança. Ele destaca que a participação da sociedade civil nas câmaras do Sistema de Comércio de Emissões (SIM) será fundamental para acompanhar a implementação e execução do sistema. Além disso, ele valoriza a inclusão de cientistas de áreas como engenharia, biologia e ciências do clima, que fornecerão o assessoramento técnico necessário.

Vieira também aponta a importância do Comitê de Articulação Federativa, que permitirá a participação dos estados e municípios, com a possibilidade de receber créditos dentro do sistema, dependendo da regulamentação. Segundo ele, o grande trunfo do modelo brasileiro é a abordagem colegiada, que envolve o governo federal, estados, sociedade civil, regulados e técnicos, garantindo uma decisão mais ampla e participativa. “Houve dúvidas se o comando ficaria só com o governo, ou muito com as empresas do setor regulado, e depois sem nenhum dos dois, mas, na minha opinião, criar uma terceira autoridade para tocar especificamente o sistema foi a melhor decisão”, diz.

A diversidade de setores envolvidos na implementação do sistema é, para Vieira, o principal mérito da versão aprovada, destacando que isso será crucial para acelerar a descarbonização do país.

Agro de fora

Fernanda Tanure, do BMA Advogados, lembra que o setor agropecuário ficou de fora da regulamentação, uma decisão que foi amplamente debatida com críticas positivas e negativas no ano passado. Mas, ela acredita que é preciso levar em conta que este segmento econômico já tem “ônus constantes na legislação ambiental, principalmente as áreas de preservação permanente (APP) e a reserva legal, bem como a dificuldade de mensurar as emissões do setor por não advirem de uma fonte fixa propriamente dita”.

O PL de Carbono vira o jogo?

Questionado se o texto do PL, como está, é suficiente para acelerar o ritmo de descarbonização do Brasil, os especialistas deixam claro que ele não é perfeito, mas pode ajudar sim.

“Com certeza contribui para a descarbonização”, enfatiza Rafael Feldmann, sócio do Cascione e especialista em Direito Ambiental. “Tão somente o cumprimento da lei já contribui, pois cerca de 5.000 agentes terão metas específicas de redução de emissões. Entretanto, existe um efeito dominó positivo, o qual seria exatamente a estimulação da compra e venda de emissões como um todo”, explica.

O mercado voluntário, sendo indiretamente estimulado pelo regulado, segundo ele, também contribui para a descarbonização, haja vista o incentivo para projetos que tenham o componente da adicionalidade (conceito de contribuição ao business as usual para reduções).

“Embora ainda seja necessário um decreto regulamentador e, eventualmente, normas adicionais que detalhem aspectos mais técnicos (por meio de resoluções, portarias etc), o PL, que será convertido em lei federal, pode acelerar a descarbonização do Brasil porque colocou na mesa as regras do jogo”, diz Marinho, da ECCON. Outro ponto positivo é a definição de regras para contabilidade e tributação de receita. “Isso pode atrair mais investimento privado e acelerar projetos e soluções climáticas”.