A exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário” que é inaugurada no próximo dia 29, no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, visa realçar o racionalismo africano, a sua riqueza, face aos preconceitos e mitos difundidos pelas potências coloniais.

“O que se pretende nesta exposição é desmontar, desconstruir um conjunto de conceitos, de marcadores, de mitos que se criaram sobre os negros, os africanos e África”, disse em entrevista à agência Lusa a historiadora Isabel Castro Henriques que coordenou a mostra. E essa desconstrução, defende, “tem de se fazer através do conhecimento histórico”.

A mostra visa destacar “a racionalidade africana face à ideia preconcebida de uma selvajaria africana”, uma das bases do colonialismo e justificação para tratar “os africanos como primitivos”, na atitude dominante das potências coloniais.

“Nós tivemos, durante o período colonial [do século XVI a 1974], um discurso, uma narrativa que marcou o nosso imaginário sobre quem eram os negros e África. Há todo um conjunto de noções, conceitos, categorias, digamos assim, que foram criadas na altura que são negativas, depreciativas: [que o africano] é selvagem, preguiçoso, que não tem leis, não tem regras, não tem História, que África é bárbara. Todo um conjunto de marcadores que foram difundidos”, disse a historiadora.

E estes marcadores sobre o africano, apontou Isabel Castro Henriques, “foram difundidos de formas extremamente eficientes e eficazes, através da escola, e depois através de um conjunto de materiais que mostravam essa ‘selvajaria africana’”, do discurso colonial.

A difusão contou com diferentes meios. Houve vias de comunicação – no caso português, a Agência Portugal e Colónias (que reformulou a sua designação ao longo dos anos, até desaparecer como Agência Geral das Colónias).

Houve as exposições sobre o Império Colonial Português, em 1934, no Porto, e em 1940, em Lisboa, com a recriação de aldeias, no Palácio de Cristal e no atual Jardim Tropical, em Belém (ex-Jardim do Ultramar), que implicaram a exposição de pessoas.

Houve cinema, anedotas, diferentes publicações, algumas supostamente científicas, que procuravam sustentar os mitos do colonialismo. Houve literatura infantojuvenil.

Todos os mitos sobre os africanos, nomeadamente o do “preto canibal”, percorreram os vários colonialismos europeus, não só o português, advertiu a historiadora, autora do livro “Os ‘Pretos do Sado’” (2020).

Castro Henriques realçou a importância da imagem, através da qual se difundiram esses mitos em Portugal, “até porque grande parte da população era iletrada”.

A historiadora defende que “essa desconstrução tem de se fazer através do conhecimento histórico”. Daí que a exposição inclua 29 painéis de 3X2 metros, que articulam texto e imagem, partindo “precisamente, de um dos muitos mitos que povoam o nosso imaginário – África selvagem por exemplo -, e a partir daí”, se desmonte “esse mito através da História”.

Assim, os painéis e o seu texto, esclareceu Isabel Castro Henriques, demonstram “o que foi, de fato, o colonialismo, o fato colonial, a situação colonial”.

Paralelamente, é apresentada uma outra vertente que mostra as produções africanas, a arte africana, “porque essas produções estão marcadas pela criatividade, pela inovação, pela racionalidade africana”, explicou Castro Henriques.

Esse “objetos têm todo um conjunto de funções sociais, culturais, religiosas e políticas, no espaço social africano, e dizem o que é África, mostram o que é África”.

“A África não é um espaço de selvagens, não sabendo fazer nada, não tendo criatividade nenhuma, não tendo racionalidade, não é. A África é um espaço de organizações políticas, de civilizações, de organizações históricas”, declarou a investigadora, autora de “A Descolonização da História” (2020).

“A arte traduz isso”, asseverou Castro Henriques, referindo que “a arte africana foi muito querida e influenciou muito a nossa arte europeia, moderna e contemporânea”.

No âmbito artístico, a historiadora insistiu no “papel social” de cada objeto que “é produzido particularmente com criatividade”. Fazem parte da exposição pentes, cachimbos, tampas de panela, bastões, e “todo um conjunto de objetos banais, mas que pela sua criatividade e por aquilo que o artista neles investiu, são objetos artísticos, dando conta dessa pluralidade, dessa diversidade e dessa culturalidade”.

Isabel Castro Henriques começou a preparar esta exposição em outubro de 2022 e nela são apresentados, tematicamente, cerca de 150 objetos.

Os mitos criados pelo colonialismo refletem-se na atualidade, atesta Isabel Castro Henriques. Por isso, impõe-se “descolonizar o imaginário e olhar de uma forma nova para aquilo que são, efetivamente, as culturas e as civilizações africanas”.

Desse modo, “a parte final da exposição reflete sobre a atualidade, aquilo que podemos chamar os legados do colonialismo no Portugal de hoje”.

A par da exposição, está previsto o ciclo de palestras “Desconstruir o Racismo, Descolonizar o Museu, Repensar o Saber”, em que serão debatidos temas atuais como o conhecimento da historiografia africana, as reparações históricas, as independências africanas e o racismo em Portugal.

“Questões que atravessam a sociedade portuguesa, como as sociedades ocidentais em geral”, rematou.

Previsto está também o ciclo “Cinema e Descolonização”, com projeções de filmes relacionados com a realidade pós-colonial, no Instituto Superior de Economia e Gestão e no Museu Nacional de Etnologia.

A exposição contou com a colaboração de cerca de 30 investigadores, entre os quais Diogo Ramada Curto, Fernando Rosas, Margarida Calafate Ribeiro, Rosa Cruz e Silva e Victor Barros.

Isabel Castro Henriques preside à comissão executiva, que inclui Inocência Mata, Joana Pereira Leite, João Moreira da Silva, Luca Fazzini e Mariana Castro Henriques. Na Comissão Científica encontram-se António Pinto Ribeiro, Aurora Almada Santos, Elsa Peralta, Isabel do Carmo e José Neves, entre outros.

No âmbito deste projeto, estão também previstas exposições itinerantes que passem pelas 17 capitais de distrito, além de Lisboa, em escolas, centros culturais e até comerciais, “pois tem de se chegar às pessoas, à população em geral”.

Estas mostras itinerantes vão reproduzir “a grande exposição” do Museu de Etnologia em ‘roll-ups’ que circulem, e a sua cedência é gratuita, bastando um pedido à organização – e há já pedidos para ser apresentada em S. Tomé e Príncipe e no Brasil, adiantou a investigadora à Lusa.

Será também editado um catálogo da exposição com textos de 26 investigadores que “pertencem a várias gerações com diferentes perspetivas e estão aí a trabalhar sobre o colonialismo”.

A exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” é organizada pelo Centro de Estudos Sobre África e Desenvolvimento, da Universidade de Lisboa, e pelo Museu Nacional de Etnologia, que a vai acolher até 02 de novembro do próximo ano.

Fonte: Mundo Lusíada