Este parece ser o mantra de alguns chefs de cozinha ao reapresentar certos pratos clássicos, utilizando matéria-prima diferente (e mais econômica) da receita original. Exemplo: moela de galinha com gosto e formato de escargot da Borgonha, como provei “lambendo os beiços” no restaurante Clube Gourmet, diante do olhar brincalhão do Zé Hugo Celidônio.

Também um outro chef meu amigo, Renato Freire, um estudioso e apaixonado praticante da alquimia dos alimentos: a cor, a forma, a textura, a temperatura, tudo pode ser recriado a partir de outras misturas e levar o gourmet a “brincar com o palato”. Tanto que em 1988 publicou a primeira edição do seu livro “A Mágica da Cozinha”, em que descreve receitas especialmente desenvolvidas para serem confundida com produtos ou pratos tradicionais.

Essa “mágica”, no entanto, não é nova. Nos banquetes italianos e franceses dos séculos 16, 17 e 18, para 300/400 pessoas, era comum substituir faisões por frangos, desde que a decoração final incluísse penas de faisão. E outras artimanhas, como … servir gatos por lebres, desde que — de novo — a “carcaça” de uma lebre viesse montada no cimo da travessa, tudo de olho no bolso!

Mas o campeão dessa “realidade modificada” foi o multigênio Leonardo da Vinci, que em 1482, aos 28 anos, deixou a sua Toscana no rumo de Milão para servir ao poderoso Ludovico Sforza, o homem mais rico da Lombardia, e a quem encantou com os seus conhecimentos culinários e cenográficos. A tal ponto que esse nobre da Renascença italiana o contratou como organizador oficial dos megabanquetes, que eram a sua marca como o maior anfitrião do seu tempo no norte da Itália.

E a prova é que a cada seis meses reunia até 300 pessoas em torno de suas mesas no Castelo Sforzesco, mandado construir por seu pai, Francesco Sforza, o “signore” da cidade. E, Leonardo criava, então, ambientes surreais. Além de tisnar de verde e vermelho as coalhadas e gelatinas, construía cenários com cascatas, grilos, água de rosas para enxugar as mãos, pequenas estátuas de marzipã, geleias de três cores, enquanto lá fora cisnes e avestruzes ficavam dando voltas em torno de tochas acesas, que por isso irradiavam uma luz pisca-pisca nas paredes dos salões.

Mas desde lá atrás, no século XVII, com a criação da versão “trompe l’oeil” na pintura, a técnica do “truque da perspectiva” já antecipava a realidade repensada, que os surrealistas de Dali e cia. tornaram célebres. A seguir, vieram o 3D e o holograma, no século passado e, hoje, a manipulação da voz e da imagem de fotografias e vídeos, através de processos que vão do metaverso aos avatares, a fronteira entre o real e o virtual se deram as mãos … para nos enlouquecerem…

Nessa minha “entrevista” com Machado de Assis, por exemplo, eu perguntei a ele se Capitu tinha ou não traído Bentinho, e ele me respondeu: “releia com cuidado Dom Casmurro que você vai descobrir por você mesmo…”

Nem o Tancredo Neves se sairia melhor!

(*) Uma das frases ótimas do poeta Mario Quintana, que nasceu “esta semana”, 30 de julho – só que de 1906

Por Reinaldo Paes Barreto