Prestes a completar 200 anos, a Vista Alegre, primeira fábrica de porcelana lusitana e uma das maiores do mundo, mantém a qualidade de seus produtos

Diz a lenda que, no final do século 17, os moradores de Ílhavo, uma pequena vila de pescadores do Norte de Portugal, tinham como missão quase obrigatória uma visita a uma fonte de água cristalina que jorrava a poucos quilômetros dali. A fama do local era tamanha, que, em 1693, o bispo Dom Manuel de Moura Manuel mandou ornamentá-la com uma bela construção, para fazer parte de sua quinta, onde a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, uma joia do barroco português, também começava a ser erguida. Além de a água fresca fazer bem à saúde, diziam os frequentadores, a fonte, por estar em uma pequena colina, permitia uma vista alegre, tão bonita era a paisagem.

Mais de um século depois, toda a propriedade do bispo foi comprada por um dos mais importantes comerciantes da época, José Ferreira Pinto Basto. Aos 50 anos, ele havia recebido do rei Dom João VI uma autorização para montar ali a primeira fábrica de porcelanas de Portugal. A Europa, em especial, a Alemanha e a França, já se destacavam na produção de louças e passaram a competir com as mercadorias chinesas, até então dominantes no mercado. Havia, contudo, um grande problema para o empresário. Os portugueses não tinham o domínio da técnica de porcelanas, apesar da boa tradição de cerâmicas. Mais importante ainda: o país não detinha a matéria-prima essencial para a fabricação das cobiçadas peças, o caulim, uma argila branca.

 

Capela de Nossa Senhora da Penha de França, de 1699. Na Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Capela de Nossa Senhora da Penha de França, de 1699: uma joia portuguesa(foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

 

Os desafios, porém, não intimidaram Pinto Basto, dono de uma das maiores fortunas do país. Em 7 de julho de 1824, quase dois anos depois da Independência do Brasil, ele abriu as portas da fábrica da Vista Alegre, cujo nome foi inspirado nos relatos de antigos pescadores que visitavam a Fonte do Carapichel. Nos primeiros 11 anos, a produção se concentrou em vidros e cristais. Foi a forma que o empresário encontrou para garantir receitas e permitir as pesquisas que, enfim, levassem a seu objetivo final, a fabricação de porcelanas. Detalhe: no Brasil, um pouco antes, o químico João Manso Pereira havia descoberto o mineral onde é hoje a Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Os indígenas chamavam o caulim de tabatinga.

A Vista Alegre comemorará 200 anos em 2024 e seus laços com o Brasil nunca se desfizeram. Da matéria-prima que o país ofereceu — e que pouco tempo depois seria descoberta a cerca de 30 quilômetros da fábrica, em Vila da Feira — ao faturamento crescente da empresa, as histórias se cruzam por completo. O Brasil foi o único local, fora de Portugal, a sediar uma unidade de produção de porcelanas da companhia. Está, em São Paulo, a maior loja fora do território luso. Do time atual de designers, a maioria é formada por brasileiros. Das cinco atuais coleções de louças mais vendidas, duas foram criadas por artistas originários do Brasil. A campeã é a coleção Amazônia, desenvolvida pelos índios caiapós, do Mato Grosso. Em quarto lugar está a coleção Transatlântica, de autoria de Brunno Jahara.

 

Garrafas para aguardentes em forma de uma baiana e uma portuguesa. Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, Portugal
Garrafas para aguardentes em forma de uma baiana e uma portuguesa.(foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

 

“O Brasil é e sempre foi muito importante para a Vista Alegre”, diz Nuno Barra, diretor administrativo e responsável pelo marketing, pelo design e pelas lojas em Portugal. Sozinho, o país garante de 4% a 5% das receitas anuais da empresa, algo como 8 milhões de euros (R$ 44 milhões) — metade, com a loja de São Paulo. Fora de Portugal, apenas a Espanha tem maior representatividade. Essa participação, porém, tende a ser maior, devido à ânsia com que os brasileiros se dirigem aos pontos de vendas da fabricante espalhados pelo país lusitano. A chefe da loja principal no complexo da Vista Alegre em Ílhavo, Maria do Céu Manaia, assinala que os turistas do Brasil, seguramente, estão entre os principais clientes. Sônia Russo, vendedora da ponta de estoque da marca, afirma que, no inverno português, são os brasileiros que “salvam” as vendas. “Não há dúvidas de que a clientela brasileira faz a diferença”, acrescenta.

Sonia Russo, vendedora da ponta de estoque da loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal
Sonia Russo, vendedora da ponta de estoque da loja da Vista Alegre em Ílhavo, Portugal(foto: Jorge Marques/ Especial para o Correio)

Coleção Amazônia

A série de porcelanas foi lançada em 2018. A Vista Alegre fechou parceria com uma ONG brasileira para que um grupo de indígenas caiapós, do Mato Grosso, fosse para Portugal com o intuito de apresentar aos pintores da empresa os traçados, as técnicas e as cores usadas nos artesanatos produzidos nas aldeias. Sementes, frutos e flores foram utilizados nos trabalhos. Parte das receitas com as vendas é revertida aos indígenas e para o reflorestamento de áreas devastadas. Desde então, mais de 15 mil árvores já foram plantadas.

Transformações culturais

 Nuno Barra, diretor administrativo da Vista Alegre em Portugal
Nuno Barra, diretor administrativo: Vista Alegre deu a volta por cima(foto: Vicente Nunes)

 

Muitas das transformações sociais e culturais vividas por Portugal nos últimos dois séculos passam pelas fábricas da Vista Alegre. A empresa sempre fez questão de ter entre os seus artistas pessoas arrojadas, disruptivas, que quebraram barreiras com seus desenhos e formas. “Não à toa, independentemente da data de fabricação, as peças são, em maioria, atuais”, reconhece Nuno Barra. “O objetivo da empresa sempre foi o de se manter antenada com seus tempos, sempre relevante. Pode parecer fácil, mas não é. Isso exige mudanças, adaptações constantes, sem fazer revoluções. Tudo muito gradual”, complementa. Por isso, toda a aura em torno da marca e todo o peso da tradição que faz a alegria de representações diplomáticas do mundo todo.

 

Fonte: Correio Braziliense