No entanto, dos três vinhos portugueses mais famosos dentro e fora de Portugal pela sua singularidade — os outros dois são os Vinhos Verdes e os vinhos do Porto – é o de currículo mais curioso, porque “mereceu” do destino duas formidáveis lufadas de sorte: 1) ter “caído” no gosto da alta elite inglesa, primeiro e, na sequência, da nova elite(*) dos norte-americanos; 2) algum enólogo (formado ou empírico) ter sacado que a adversidade — longas travessias em  mares revoltos – foi e é a razão de sua singularidade. Donde o seu apelido: o vinho Torna Viagem!

Vamos às provas (com trocadilho).

O Vinho Madeira era importado pelos ingleses para consumo “na ilha”, desde o início do século XVII. Mas os comerciantes da City exerciam forte influência sobre as suas 13 colônias na América do Norte e decidiram faturar mais, exportando o Madeira para a elite da “Nova Inglaterra”.

Só que os revendedores ingleses enviavam os tonéis para os EUA sem avaliar corretamente a demanda (não havia planilha eletrônica à época!!! ) e, portanto, enviavam tudo o que podiam. Só que como o mercado de lá não absorvia nem 70% do volume que desembarcava, voltava muito vinho Madeira para Londres! Daí ele passou então a ser chamado de Vinho da Roda ou de Vinho Torna Viagem.

E agora o milagre: o vinho voltava melhor! Sim, “milagrosamente” nem o calor, nem os solavancos das caravelas em cima do tumulto das ondas do oceano faziam mal ao vinho. Então, e movidos pela evidência de que o calor melhorava o vinho, porque a acelerava o seu envelhecimento, enriquecendo a sua COMPLEXIDADE, os produtores das encostas de Funchal começaram a investir na técnica de ESTUFAGEM, que consistia (e consiste) em obter o mesmo efeito do Vinho Torna Viagem sem sair da Ilha da Madeira.

Como? Pelo aquecimento direto, obtido pelo vapor de água quente circulando nas serpentinas das pipas. Detalhe: em qualquer outra elaboração de um vinho, em qualquer outro lugar do planeta, em qualquer época da História, essa técnica corresponderia a um tiro na cabeça: morte certa. Mas no caso do Vinho Madeira é o seu DNA de qualidade!

Finalmente: o vinho Madeira é produzido com as uvas locais Tinta Negra, Sercial, Boal, Verdelho e a Malvasia, estas quatro últimas com melhor resultado de vendas. Mas de todos os Madeiras, o Madeira pra chamar de meu, é esse mesmo Sercial 10 anos, que George Washington já apreciava há mais de 200 anos e com ele brindou – ao lado dos Founding Fathers — a assinatura da independência americana – dos ingleses!

Conclusão: as águas separam os povos, (mas) o vinho os aproxima!

(*) George Washington tinha as bochechas rosadinhas (seria o Vinho Madeira?) e era um estadista com tal visão da “gastronomia de estado”, que fazia dos jantares em sua propriedade em Mount Vernon, na Virgínia, um “show-room” dos produtos de seus país. A tal ponto, que tanto ele quanto a sua mulher, Martha, nunca jantavam a sós. Tinham sempre convidados, sobretudo estrangeiros. E serviam desde a “chowder”, que é uma sopa de amêijoas (no caso colhidas no rio Potomac) e mariscos, com leite, tipicamente americana, até copiosos “barbecues” com carne de boi confinado de sua fazenda. E Vinho Madeira! O homem sabia das coisas…

 

Por Reinaldo Paes Barreto