O conceito legal de atividade rural suscita teses jurídico-tributárias ainda pouco exploradas pelo Poder Judiciário.
A discussão se origina da profunda transformação pela qual a atividade rural passou nas últimas décadas, em que houve profunda mecanização e integração de processos, acarretando o surgimento de complexos agroindustriais.
Tais avanços ocasionaram uma certa obsolescência das definições legais, o que afeta diretamente a interpretação de benefícios e tratamentos tributários específicos. Vale lembrar que a realidade da integração entre campo e indústria, contudo, já era presumida desde o estatuto da terra (Lei 4.504/64, art. 14), tendo sido reconhecida pelo próprio legislador constituinte, que equiparou, expressamente, as atividades agrícolas, agropecuárias e agroindustriais para fins de política agrícola nacional. E isso, inclusive, no que se refere aos instrumentos creditícios e fiscais (art. 187, I, §1º).
Tendo por pano de fundo este quadro, discute-se a possibilidade de compensação integral, pelas agroindústrias, de prejuízos fiscais (prevista pelo art. 14 da Lei 8.023/1990), bem como o uso do mecanismo da depreciação acelerada de bens do ativo imobilizado (prevista pelo art. 6º da MP 2.159-70/01).
Nota-se que o art. 2º da Lei 8.023/1990 conceituou atividade rural pela positiva, incluindo a agricultura, pecuária e a extração e exploração vegetal e animal.
No inciso V foi incluído no conceito a transformação de produtos decorrentes da atividade rural, sem alteração da composição e características do produto in natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando-se exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada.
A Receita Federal, por sua vez, restringiu ainda mais o conceito por meio da IN SRF 257/2002, ao trazer um rol de atividades que descaracterizariam a atividade rural, incluindo a industrialização de produtos (art. 3º, I).
Como consequência, contribuintes que claramente exercem atividades rurais, mas que integram tais atividades à industrialização, ficariam, do ponto de vista da RFB, impedidos compensarem integralmente prejuízos fiscais (i.e., sem a trava de 30%) e de se valerem da depreciação incentivada.
A interpretação restritiva defendida pela RFB baseia-se num literalismo: impõe que apenas a transformação implementada por equipamentos e utensílios usualmente utilizados na atividade rural não descaracterizariam a atividade rural.
Contudo, tal interpretação não mais se coaduna com a realidade fática, dada a disseminação do complexo agroindustrial. O art. 2º, V, da Lei 8.023/90 contém, por sinal, uma atecnia, ao prever que apenas se enquadra no conceito de atividade rural a transformação de “matérias-primas” produzidas pelo produtor rural. Há, em tal frase, uma contradição em termos, pois se não há industrialização, não faz o menor sentido falar-se em matéria-prima, termo ligado à produção industrial.
Numa interpretação teleológica, não há sentido em se segregar as atividades agroindustriais para efeito de impedir a fruição de benefícios como a compensação integral de prejuízos ou depreciação incentivada, uma vez que tal segregação – para fins de interpretação de instrumentos creditícios e fiscais – viola ao art. 187, I, §1º, da CF-88.
Acrescenta-se que a própria literalidade do art. 14 da Lei 8.023/90 não exige que a atividade rural seja “pura” para fins de fruição do benefício da compensação integral de prejuízos fiscais. A propósito, a própria redação do art. 18 da lei parece presumir a existência de contribuintes com atividade industrial paralela à atividade rural, conduzindo, assim, por uma interpretação sistemática, a que contribuintes que exerçam atividades agroindustriais não estejam alijados do tratamento fiscal mais benéfico instituído pelo legislador.
Quando se trata da questão atinente ao aproveitamento do benefício da depreciação incentivada por empresas agroindustriais, há diversos precedentes do Carf favoráveis aos contribuintes. Em um destes casos (Acórdão 1402-004.538), o Carf chegou a considerar ilegal a IN SRF 257/02, por restringir excessivamente o conceito de atividade rural, limitando-o às atividades puramente rurais.
Semelhante linha de entendimento foi adotada pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Neste precedente, o TRF3 se valeu de uma interpretação teleológica, ao defender que impedir o benefício fiscal da depreciação incentivada às empresas agroindustriais significaria restringir, excessivamente, o conceito de atividade rural, o que não condiz com o programa constitucional representado pela política agrícola. A interpretação do TRF3 foi de que o conceito de “atividade rural” previsto pelo legislador deve, sob pena de inconstitucionalidade, abranger aquela que se aperfeiçoa com técnicas da agroindústria.
Nota-se que a mesma linha de argumentação serviria, perfeitamente, para permitir a compensação integral de prejuízos por parte das empresas agroindustriais – ou, no mínimo, a compensação de prejuízos para além da trava de 30% na proporção representada pelos custos da atividade tida por estritamente agrícola. Isso, considerando que não há dúvidas de que tais empresas agroindustriais exercem, ao menos em certa medida, atividade rural contemplada pelo tratamento incentivado conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, os fundamentos jurídicos e econômicos da tese recomendam que as agroindústrias busquem, no Poder Judiciário, o seu direito de se valer da compensação integral de prejuízos (i.e. além da trava de 30%) e depreciação incentivada de equipamentos destinados ao seu ativo imobilizado.
*Artigo publicado originalmente no JOTA.